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Entre muros físicos e ideológicos

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Qual é o sentido de celebrar a queda dos muros físicos, se agora nos cercamos de muros ideológicos e culturais? No passado, o muro separava o Oriente do Ocidente, o comunismo do capitalismo, a opressão da liberdade. Hoje, a linha de divisão é mais complexa, mas igualmente devastadora.

“No entanto, pergunto-me: se Kennedy falasse hoje, seria capaz de dizer “Ich bin ein Europäer” com a mesma certeza e sentimento de pertença que um americano?”

Há 35 anos, o mundo testemunhou o colapso de um dos símbolos mais opressivos e divisivos da história moderna: o Muro de Berlim. Para muitos, a queda daquele muro na noite de 9 de Novembro de 1989 marcou o fim de um capítulo negro e o início de uma nova era de liberdade e integração europeia. A Alemanha, outrora dividida, foi reunificada e a Europa parecia avançar com a promessa de que a paz, a prosperidade e a democracia floresceriam finalmente sem barreiras.

Para muitos europeus e observadores no estrangeiro, o discurso icónico de John F. Kennedy, que em 1963 se declarou “Ich bin ein Berliner”, ressoa até hoje. Curiosamente, a frase contém um erro gramatical, mas a sua força simbólica é inegável. Kennedy, sem ser alemão, reivindicou simbolicamente a identidade de Berlim como símbolo de resistência e liberdade, algo que soou quase profético. No entanto, pergunto-me: se Kennedy estivesse a falar hoje, poderia dizer “Ich bin ein Europäer” com a mesma certeza e sentimento de pertença que um americano? O espírito de um continente unido e democrático ainda existe, mas parece ameaçado por novos muros, tão insidiosos quanto invisíveis.

Nos últimos 35 anos, muitas coisas mudaram na Europa. A União Europeia, enquanto projecto político e económico, consolidou-se e expandiu-se, integrando os países do antigo Bloco de Leste e promovendo uma esfera de influência democrática. No entanto, a Europa de hoje enfrenta crises que põem em causa esta união. A Alemanha, que durante décadas foi o motor da integração e da estabilidade europeias, atravessa actualmente uma crise profunda.

O governo alemão está dividido e enfraquecido, enfrentando uma perda crescente de apoio popular. A sociedade está cada vez mais polarizada e o descontentamento alimenta o crescimento da extrema direita, que anos atrás era vista como marginal, agora ganhou força a ponto de conquistar assentos em parlamentos e governos regionais e ter representação significativa no parlamento federal.

A economia tradicionalmente robusta da Alemanha está estagnada, atingida por problemas estruturais, por uma dependência excessiva das exportações e pelo impacto das tensões comerciais globais. A transição energética, que visa reduzir a dependência dos combustíveis fósseis, coloca ainda mais pressão sobre a economia e desafia sectores-chave como o automóvel e a indústria pesada. Estes factores acentuam o descontentamento e criam terreno fértil para soluções simplistas e nacionalistas.

Além disso, a crescente fragmentação política dificulta a formação de consenso. A coligação governamental, formada pelo SPD, pelos Verdes e pelo FDP, enfrenta conflitos internos, com divergências na política económica, energética e de imigração. Olaf Scholz, o chanceler social-democrata, é criticado pela sua falta de liderança e visão estratégica, e o governo está a poucos dias de cair.

A ascensão dos movimentos populistas na Alemanha reflecte uma tendência que se espalha por toda a Europa. O cepticismo quanto à eficácia das instituições democráticas, o desencanto com os partidos tradicionais e a desconfiança entre os países membros da União Europeia alimentam um sentimento de fragmentação e incerteza. Com a Alemanha dividida e em crise, o papel do país como força estabilizadora na Europa é posto em causa, o que poderá ter graves consequências para o futuro do projecto europeu.

A questão então é: que sentido faz celebrar a queda dos muros físicos, se agora nos cercamos de muros ideológicos e culturais? No passado, o muro separava o Oriente do Ocidente, o comunismo do capitalismo, a opressão da liberdade. Hoje, a linha de divisão é mais complexa, mas igualmente devastadora. Estes novos muros separam aqueles que ainda acreditam numa Europa democrática, baseada nos direitos humanos, na justiça e na paz, daqueles que preferem uma Europa cínica, fechada e disposta a renunciar aos princípios fundamentais em troca de uma segurança ilusória ou de uma prosperidade imediata, que trará. com ele discurso xenófobo, racista, de extrema direita e divisionista.

Mas há mais em jogo. Este novo ciclo de divisões não é apenas europeu; É global. Em todos os continentes, os valores democráticos estão sob ataque, seja por regimes abertamente autoritários, seja por democracias que, ao combaterem ameaças internas, acabam por corroer os seus próprios princípios fundadores. Outrora um centro de resistência e de reunificação, a Alemanha enfrenta um dilema: como permanecer fiel aos valores europeus e democráticos num mundo onde a tirania parece cada vez mais uma opção atraente para aqueles que procuram respostas rápidas e autoritárias para problemas complexos?

O futuro da Europa exige coragem renovada. Um compromisso com a democracia, não apenas em palavras, mas em ações. A geração que viu a queda do muro tem agora a responsabilidade de se perguntar o que significa ser “um berlinense” no século XXI. Ser “europeu” hoje, isto é, assumir esta identidade plural e democrática, exige que enfrentemos estes novos muros. Não basta lembrar os erros do passado; É necessário evitar a sua repetição.

Para o futuro, a única certeza é que uma Europa dividida e fragmentada será sempre vulnerável. Precisamos de uma União Europeia coesa, capaz de prosperar e de se defender, mas também de líderes dispostos a compreender que, enquanto existirem muros – físicos ou ideológicos –, a promessa de uma Europa de paz e de liberdade total será cumprida. Se aspiramos a um futuro mais livre e mais democrático, talvez devêssemos começar por reivindicar, mais uma vez, o verdadeiro significado de ser “Berliniano”, mas desta vez sem erros gramaticais e, mais importante ainda, sem barreiras que nos separem dos outros. . É fundamental que nos unamos com coragem e determinação para derrubar estes muros, eliminando de uma vez por todas as suas causas, os apoios que os sustentam e aqueles que os defendem.

Fuente

Endless Thinker

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